“Atabicar o caminho”
um audiowalk para Guimarães
por João Martins
As cidades são, antes das casas, das ruas, ou das praças, os locais onde nos juntamos. Onde paramos e nos tornamos verdadeiramente gregários: escravos do território que julgamos explorar. Ou que exploramos mesmo.
São os sítios das biografias colectivas, dos conflitos pequenos e grandes, domésticos e públicos.
São mais do que a soma do que somos, porque são também o que nos subtraímos e os milagres e os desastres da divisão e multiplicação de recursos e malfeitorias que fazemos ou deixamos fazer.
São o que espalhamos à nossa volta nesse momento de parar e dizer: “é aqui”. É aqui que nascemos, é aqui que morremos.
A Ribeira de Couros atravessa a cidade de Guimarães em regime de apneia. Ouvimo-la resfolegar debaixo das ruas, vemo-la ser engolida pelos edifícios, sabemos que, desde tempos imemoriais, as “gentes de luta e labor”— dos curtumes e não só—, canalizaram e canibalizaram a Ribeira e sobre ela construíram os espaços do trabalho e da vida.
A cidade fora da cidade, fora do perímetro muralhado, com cheiros e vidas que não juntavam ao útil, o agradável, encosta-se nas margens da ribeira. Sobre ela se debruça e pousa as suas estruturas. Bebe a água que nasce na Penha e é com ela que alimenta a terra e o trabalho e é sobre ela, também, que despeja os seus desperdícios.
Sim, é o “merdário”, esta ribeira que se esconde debaixo das ruas e das casas, mas é também com ela que se lava a roupa nos tanques públicos e se regam os campos, da Penha até à Veiga de Creixomil.
Junto ao novo Mercado Municipal— onde o vento faz ranger as lonas e se ouve uma catatua—, a ribeira reencontra o ar e, por breves instantes, interrompe a sua prolongada apneia.
Em alguns dias, a cor da água, sugere que, algures, entre a Penha e a cidade, alguém lava toda a roupa de Guimarães nesta água. Imagino um tanque gigantesco e braços fortes a esfregar séculos de fraldas e lençóis da nação que nasceu de uma disputa familiar.
(Um filho e uma mãe desavindos terão sempre muita roupa suja para lavar.)
Mas logo a água se some, engolida por estruturas seculares— o Brecht diria qualquer coisa sobre tudo isto, com certeza— e as voltas que damos à procura desses assomos da água, ensinam-nos os caminhos de Couros e das quintas que se haviam de plantar nestas margens até à Veiga de Creixomil, onde as águas já só desperdício, já só fedor, se haviam de aliviar e purificar na rega dos campos.
É também nesta violência sobre as águas que se desenha e define a cidade; nesta mistura de exploração exaustiva e controlo obsessivo que faz nascer casas que engolem a ribeira.
Na rua onde se planta um Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura, um Mercado e uma Feira, a ribeira circula, em contra-mão, algures debaixo de nós.
Canalizada e posta ao serviço da indústria, em tempos, que corrente é esta agora? O que traz e para que serve?
Imagino os “rápidos” na escuridão total deste ventre pós-industrial.
E aquela árvore solitária? Há quanto tempo está a olhar para nós?
Texto publicado no jornal LURA, n.º 24, abril a julho 2013. A AVE agradece ao autor e ao Serviço Educativo do CCVF a amável cedência do texto. Para mais informação sobre o projeto Atabicar o caminho – um audiowalk pela cidade